domingo, 14 de dezembro de 2014

Vietname — Robert em Hanoi


Esta coisa das rivalidades entre cidades de um mesmo país é um fenómeno que me ultrapassa e que a maior parte das vezes me irrita, mas no decorrer da viagem as opiniões tendenciosas que fui colhendo sobre os locais que me preparava para visitar não só trouxeram algum colorido às conversas com autóctones e expatriados, como estiveram na origem de boas surpresas. As mesmas considerações que ouvi de cariocas ou paulistanos sobre Brasília — que não há muito para ver ou fazer na cidade... — ouvi meses mais tarde em Saigão acerca de Hanoi. Por isso, quando parti do sul para a capital do Vietname ia quase convencida que a cidade mais estimulante do país estava a ficar para trás. Puro engano! 

Notoriamente mais pequena e com menos população que Saigão, Hanoi é uma capital tranquila e elegante. Obviamente, para nós, portugueses, tudo isto é relativo, sobretudo se tivermos em conta que esta "pequena" e "tranquila" capital conta com pelo menos seis milhões de habitantes. Mas, para quem chega de Saigão, acreditem que a diferença é substancial. O coração da cidade é um lago diminuto chamado Hoan Kiem, que alberga, numa extremidade, um templo ao qual se acede por uma ponte vermelha. O seu reflexo sobre o espelho de água deve ser uma das imagens mais captadas pelas câmaras dos visitantes. Este lago, que podemos contornar numa caminhada que não dura mais de meia hora, é o grande ponto de encontro dos habitantes de Hanoi. É à sua volta que fazem jogging, é nos jardins que o envolvem que praticam tai chi, ginástica ou dança, é nos seus bancos que os casais namoram, é nas suas margens que os grupos de amigos se sentam para conversar enquanto comem gelados e é nas suas imediações que existem algumas das melhores lojas da cidade, assim como hotéis e restaurantes. A partir deste ponto cheio de vida, estende-se para norte o Old Quarter e para sul o French Quarter, os dois bairros que juntamente com o lago definem o núcleo de Hanoi. E foi aqui, flanando pelas ruas destes bairros e sentada na margem deste lago, que a minha paixão súbita pelo Vietname se consolidou. 

Vejo e revejo as fotos desses dias à procura de uma razão objetiva que justifique o impacto que esta cidade teve em mim. Mas como é que se explica objetivamente uma espécie de feitiço? À partida, Hanoi tinha tudo para me enlouquecer: a propaganda do Partido Comunista debitada a partir das sete da manhã através dos altifalantes espalhados pela cidade; a falta de limpeza e de higiene; o trânsito caótico; o perigo que é atravessar qualquer estrada, mesmo onde há semáforos; o idioma que não entendo; os milhares de motos que ocupam os passeios forçando-me a andar na estrada; o ruído constante; o sol que não se vê e o mar a centenas de quilómetros. 

Mas depois há o insólito. Há o karaoke de rua, à noite, com uma aparelhagem rudimentar e colunas de som fanhoso. Um jovem parece assassinar uma qualquer canção vietnamita, enquanto centenas de pessoas assistem, sentadas em banquinhos de plástico azul, bebendo cerveja e comendo sementes, como se estivessem a ouvir o melhor cantor lírico. Há os dois negócios mesmo em frente ao hotel onde me alojo e cuja atividade constante observo ao pequeno-almoço: à esquerda um cubículo onde um jovem passa o dia a lavar motociclos; à direita um talho, onde uma mulher, sentada numa banqueta de madeira, decapita e depena frangos metodicamente. Há o homem na esquina que, naquilo que parece uma simples abertura numa parede, montou uma oficina para reparação de eletrodomésticos. E as peças que ocupam aquela abertura são tantas e estão de tal forma entaladas do chão ao teto que temo pela segurança do homem caso tudo aquilo lhe caia em cima. Há a farmácia onde entro para comprar lenços de papel e onde, perto do balcão, se coze arroz numa panela. Há a vendedora de postais, a quem a Nilza faz a primeira compra do dia e que à noite, ao rever-nos, se aproxima numa grande agitação, gritando "Good luck! Good luck". Pede uma foto com a cliente que lhe deu sorte. No dia seguinte, no mesmo lugar, espera por nós para nos apresentar os filhos e tira-nos mais fotos, desta vez com o seu telemóvel. Há o sapateiro, apenas uma criança, que aparece do nada, aponta para os meus pés enquanto solta uma algaraviada incompreensível. Sem que pudesse antecipá-lo, arranca-me a sapatilha do pé direito e vai esconder-se para lá de uma esquina, senta-se num degrau e empreende o arranjo da sola descolada. Há o condutor de riquexó, pequeno e franzino, que depois de nos passear quarenta e cinco minutos, pedalando pelas ruas requintadas do bairro francês, leva a cabo, de sua livre iniciativa, toda uma sessão fotográfica com uma das nossas câmaras, sugerindo-nos as mais variadas poses em cima da sua bicicleta. E há as ruas ladeadas por grandes árvores; as vendedoras de flores de lótus que se deslocam de bicicleta; as vendedoras de ananases que perfumam as ruas com o cheiro da fruta madura; as lojas exíguas onde em menos de vinte e quatro horas se confecciona qualquer peça de roupa à nossa medida no melhor linho, no mais puro algodão ou na seda mais delicada; o restaurante gerido por um grupo de mulheres, irmãs talvez, que se entendem aos berros, naquilo que aparenta ser uma eterna discussão e que servem com modos rudes as melhores refeições que faço na cidade. E tantos, tantos outros pormenores inebriantes

Todos os dias, como se tivesse necessidade das suas águas paradas para serenar, dei por mim junto à margem do Hoan Kiem. Ao meu redor, o burburinho de Hanoi, a cidade com mil anos, não cessava. Mas o arvoredo à volta do lago transmitia uma sensação de paz. Foi sem surpresa que aí encontrei alguns leitores, porque os bancos estrategicamente colocados pareciam ter sido concebidos apenas para esse efeito: ler. Talvez Robert, um escocês de férias no Vietname, tenha sentido também a necessidade de se evadir. Então, por uns momento, esqueceu o rumor de milhares de motociclos, as temperaturas elevadas e o ar saturado de humidade para ir até Westeros, aquela terra da Europa medieval, coberta de gelo e dilacerada por um conflito sangrento que George R. R. Martin descreve n' "A Guerra dos Tronos". 

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